vendredi 9 mars 2018

UM TEATRO QUE ILUMINA AS TREVAS


Encenação de Gabriel Villela para Hoje é dia de rock.
Ou de como o teatro ilumina as trevas e 
"nos engravida de esperança e amor pela diferença"

Após uma temporada de quase quinze meses em Paris, os deuses do teatro armaram a meu favor e lá estava eu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, na noite de 2 de março de 2018, coração acelerado, para ver a estreia de Hoje é dia de rock. O texto de José Vicente, ícone da contracultura, encenado por ninguém menos que Gabriel Villela, integrante da minha Santíssima Trindade Teatral ao lado de Ariane Mnouchkine e Omar Porras, daria o ponta pé inicial das comemorações dos 50 anos do Teatro Ipanema.
Morando fora do Rio há vinte anos, minha última estreia carioca foi Brasileiro Profissão Esperança, com Bibi Ferreira e Gracindo Júnior, no antigo Metropolitan na Barra da Tijuca, em dezembro de 1997, a vida não poderia ter sido mais generosa e nem escolhido momento melhor para eu rever a cidade onde vivi - entre 1976 e 1997 - e construí minha carreira de assessora de imprensa, produtora e administradora teatral. Chegar e ser recebida por Gabriel Villela, com direito a encontro no camarim antes do espetáculo, lugar reservado na plateia, somados ao carinho, ao respeito e a amizade que tecidos ano após ano, só confirmam minha certeza de que são os afetos que mantém acesa minha paixão pela vida, fizeram dessa noite uma noite por si só inesquecível.
Tudo indicava que seria uma noite de grandes e fortes emoções. Um espetáculo de Gabriel Villela mexe sempre com o mais profundo do meu ser. São espetáculos que renovam minha crença no teatro e na humanidade, em tempos sombrios como os que vivemos, tudo o que acontece no dia a dia parece destruir toda e qualquer possibilidade de continuar acreditando. Ao final dos espetáculos de Gabriel tenho uma enorme vontade de abraçá-lo, de agradecer pela delicadeza e de sair cantando, como na canção do Chico Buarque: "vem me dê a mão/ A gente agora já não tinha medo/ No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido".
Mas, na noite da estreia de Hoje é dia de rock, as emoções começaram muito antes. Impossível chegar ao Teatro Ipanema sem rever um filme dos meus primeiros anos de Rio de Janeiro. Desde 1977, com A Chave das Minas, do próprio José Vicente, dirigida por Ivan Albuquerque - perdi a conta de quantas vezes vi, como não pensar no Beijo da Mulher Aranha e no Artaud que fizeram de mim uma apaixonada por Rubens Corrêa e last but not least, nas temporadas de Angela Ro Ro, que de ídolo se fez amiga e depois comadre...E eu sabia que era só o começo.


Ver uma montagem de Gabriel Villela para Hoje é dia de rock, no teatro onde José Vicente estreou em 1969, com a montagem de O Assalto dirigida por Fauzi Arap, com Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque, tinha um sabor especial. Foi o sucesso de O Assalto que determinou a inscrição do nome do autor no panteão dos dramaturgos da época, ao lado de Leilah Assumpção, Isabel Câmara, Consuelo de Castro e Antônio Bivar, além de garantir ao autor os prêmios Molière, Golfinho de Ouro e Associação Paulista de Críticos Teatrais.
Longe de ser uma historiadora do teatro brasileiro, não passo de uma palpiteira, não temo exagerar ao afirmar que o teatro carioca na segunda metade do século XX se divide em antes e depois de Hoje é dia de rock.
Ver a história da família de Pedro Fogueteiro (Rodrigo Ferrarini) - um músico, como tantos que conheço, alimentado pelo sonho de criar uma nova clave musical e de Adélia (Rosana Stavis) - a mãe sufocada pela realidade e que sabe que clave musical não paga casa, comida e educação para os filhos, e por isso a aposta na mudança para a cidade grande, a única chance de dar aos herdeiros a tal "vida melhor" - no palco da montagem original era uma sensação indescritível para alguém que tem memória e acredita que sem honrar os que nos antecederam não seremos dignos de futuro.
A história, aparentemente banal, dessa família que troca o sertão de Minas Gerais pelo sonho da capital, como bem disse Mariângela Alves de Lima, nada mais é que "a utopia de um reino livre, o reino interior de cada ser humano onde é possível exercer-se". Hoje é dia de rock nasceu nos anos negros da ditadura - a turma do politicamente correto vai me matar! - e ainda assim José Vicente e Rubens Corrêa, inspirados no realismo mágico de García Márquez, apesar de todo o engajamento político dos dois, optaram pelo não enfrentamento da ditadura de forma violenta. Eles preferiram apostar na música e na poesia como instrumentos de combate à violência, e o sucesso da peça, os dois anos de casa lotada, provaram ser possível fugir do naturalismo sem deixar de estabelecer um diálogo com as questões do tempo presente.


Gabriel Villela, eterno menino de Carmo do Rio Claro, em sua mineirice, entendeu a mensagem original e a transportou para o nosso tempo, tempo onde "vivemos momentos de ódio e polarização, em que energias negativas nos rondam. A mensagem que devemos passar pra moçada é outra: caiam fora disso, deixem o ódio de lado. Vamos jogar luz nas trevas". E como os que vieram antes - no caso José Vicente e Rubens Corrêa - opta pelo uso da música, da poesia, da beleza e da delicadeza como os antídotos mais eficazes contra diversos tipos da violência de hoje, não muito diferente da vivida na década de 70. Não por acaso Gabriel afirma que a peça continua transgressora e mais necessária do que nunca, ele sabe que vivemos tempos que clamam por poesia.
Sempre reivindiquei o direito de, como mulher de teatro, escrever sobre teatro, mas sempre deixei claro o fato de não ser crítica de teatro, por isso não vou me deter em cada detalhe do espetáculo, deixo isso para os profissionais, tenho lido coisas lindas sobre Hoje é dia de rock, os críticos o fazem de maneira cartesiana, estruturada, enquanto eu sei apenas escrever sobre sentimentos e emoções, que afloram de maneira impressionante a cada encenação de Gabriel. Tudo o que sei é que há quase três décadas ele me fascina pela sua capacidade em se reinventar, em burilar à perfeição cada detalhe que compõe a cena, da riqueza dos figurinos à delicadeza da movimentação dos atores, tudo no teatro de Gabriel me remete ao artesanato nobre da alta costura.
Gabriel excede e me conquista. Confesso não ter afinidade com um certo tipo de teatro muito em moda nos últimos tempos em terras brasileiras, um teatro que às vezes eu penso que é, ou intelectual demais, ou realista demais, ou abstrato demais. Mas sobretudo voltado para o próprio umbigo. Não me interessam processos levados à cena, sou apenas público e como tal quero resultados, o resultado para mim é o espetáculo. Necessito de diretores que façam teatro para o público e não para a classe, diretores que dialoguem com o tempo presente sem pudor de voltar às origens ou aos clássicos para estabelecer esse diálogo. Necessito de diretores que acreditem na música, no humor, no riso, na poesia, na beleza e de preferência com delicadeza, que usem o teatro enfim para combater o horror dos tempos que vivemos. No Brasil esse diretor, que busco pelos palcos do mundo, tem nome e sobrenome: Antônio Gabriel Santana Villela, ou simplesmente Gabriel Villela. Alguém capaz de fazer das cenas de morte - como a da mãe em Peer Gynt e a do pai em Hoje é dia de rock - as mais belas cenas, se eu pudesse encomendaria a Gabriel a minha morte, ninguém mata em teatro como ele, não é Claudio Fontana?


Impossível não falar dos treze atores do Teatro de Comédia do Paraná: Arthur Faustino, Cesar Mathew, Evandro Santiago, Flávia Imirene, Helena Tezza, Kadê Persona, Loana Godin, Matheus Gonzáles, Nathan Milléo Gualda, Paulo Marques, Pedro Inoue, Rodrigo Ferrarini e Rosana Stavis e faço questão de citar um por um, porque cada um tem sua cena, tem seu momento solo, num espetáculo que é uma ode ao coletivo.
Meu lado professora da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia se realiza quando encontra, fora do eixo Rio x São Paulo, atores de faixas etárias diversas, com tanto talento e tanto empenho, pois o que está no palco do Teatro Ipanema é fruto, antes de tudo, de trabalho feito com determinação, força de vontade e dedicação. Gabriel acertou na escolha do elenco e o elenco acertou ao acreditar no caminho traçado por Gabriel.


Não posso terminar sem falar do trabalho de Marco França, assinando não apenas a direção musical, mas também os arranjos e a preparação vocal. A parceria Gabriel Villela e Marco França me remete a parceria de Ariane Mnouchkine e Jean-Jacques Lemêtre, quem viu os espetáculos do Théâtre du Soleil desde Méphisto (1978) é incapaz de conceber um trabalho de Mnouchkine sem a presença do mago da música em cena. Uma das minhas maiores tristezas - mais do que isso, queixa mesmo - com o teatro feito no Brasil de hoje, tem relação com o despreparo vocal dessas últimas gerações. Gerações tidas e havidas como "mudernas" e que não hesitam em sonorizar salas de 200 lugares, onde o microfone substitui o trabalho de voz e alimenta a preguiça dos novos atores (?). Dinossauro do teatro que sou, discípula de Procópio Ferreira, tenho o ator como um "atleta da palavra" e não posso esquecer de Bibi Ferreira, a cada teste ou seleção de elenco repetindo que se um ator tem capacidade vocal ela poderia fazer qualquer coisa, sem essa qualidade ela não poderia trabalhar, pois não acredita em milagres. Marco França vai além, foi assim em Peer Gynt e é assim em Hoje é dia de rock, as vozes são ouvidas seja no canto, seja na fala, de forma tão precisa e perfeita que cheguei a perguntar a Gabriel, ao final de Peer Gynt se os atores estavam "microfonados".
Há alguns anos, quando levei para Salvador Jean-Jacques Lemêtre, recebi um pedido de inscrição de Marco França, com a humildade dos grandes talentos, lá estava ele ao lado do mestre dos mestres, sem ter consciência talvez que ele mesmo já era um. Vê-lo no palco, presença determinante no andar do andor barroco do meu anjo Gabriel, é um prazer duplo: pelo bem que faz aos atores e ao espetáculo.
A força e a importância da música em Hoje é dia de rock é inegável, é uma viagem e é possível escrever uma tese sobre as escolhas feitas, mas houve para mim um momento que beirou o sagrado, quando Marco França sola o arranjo de Ernani Maletta para Desenredo, música de Dori Caymmi e letra de Paulo César Pinheiro, as lágrimas desceram como cascata pelo meu rosto, a imagem de Clara Nunes num cenário de Elifas Andreatto, iluminada por Bibi Ferreira invadiram a cena do Teatro Ipanema, como que para me lembrar, por meio dos versos do poeta "o olhar que prende anda solto, o olhar que solta anda preso" o efeito do teatro em minha vida.


Ao final do espetáculo, plateia aplaudindo de pé - e que plateia -, emoção correndo forte na sala, surge Gabriel para os justos agradecimentos e as homenagens. À família de José Vicente, homenagem comovente porque, num país sem memória, é sempre emocionante participar de momentos que resgatam a história. Ao Teatro Ipanema, casa tão importante para toda uma geração que lá aprendeu a amar o teatro de qualidade, seja como profissional das artes cênicas, seja como público espectador, esse personagem sem o qual o teatro não existe, ainda que nos últimos anos exista gente tentando provar que o teatro não precisa de plateia. Ao elenco de Ventania, peça de Alcides Nogueira montada em 1996 e que retratava o universo de José Vicente. Agradecimentos ao Ministério da Cultura, ao Governo do Estado do Paraná, registrando a presença do secretário de estado da Cultura, João Luiz Fiani e da Presidente da Fundação Teatro Guaíra, Monica Rischbieter, sem esquecer de agradecer aos produtores e aos técnicos. Afinal em cena estavam os atores do Teatro de Comédia do Paraná, criado em 1963 com a finalidade de orientar e coordenar as atividades teatrais do Teatro Guaíra como registra o texto do programa da peça.


Chegou a hora da confraternização final, depois da celebração proposta pelo espetáculo, foi a vez do Paraná homenagear Minas Gerais, reunindo os presentes em torno de um caldinho de feijão com torresmo, uma cachacinha da melhor qualidade e um queijo vindo direto da Serra da Canastra. E entre encontros e despedidas, conversas e fotos, tive a sensação de viver uma noite de teatro daquelas que já não se fazem mais, pelo menos não mais todos os dias. A não ser quando "dinossauros" do teatro se encontram.
Ao ler há alguns, a entrevista de Gabriel ao jornalista Luiz Felipe Reis do jornal O GLOBO, não pude deixar de anotar a frase usada por ele e que traduz, para mim pelo menos,  Hoje é dia de rock: "a peça fala de afetos primordiais e de valores que são eternos. Mas se a gente fala assim, hoje, começam a chamar a gente de doido... Tem sentido hoje também por isso, está tudo tão à beira do fim do mundo... Acho que ela conversa com esse trágico.".
Eu se fosse você, aceitava correndo o convite feito por Gabriel Villela no belo programa do espetáculo: "escolha um assento nesse trem, porque hoje é dia de poesia...".



SERVIÇO "HOJE É DIA DE ROCK"
Texto: José Vicente
Direção, Cenografia e Figurinos: Gabriel Villela
Diretor Assistente: Ivan Andrade
Direção Musical, Arranjos e Preparação Vocal: Marco França
Produção: Áldice Lopes, Daniel Militão e Diego Bertazzo
Elenco: Arthur Faustino, Cesar Mathew, Evandro Santiago, Flávia Imirene, Helena Tezza, Kadê Persona, Loana Godin, Matheus Gonzáles, Nathan Milléo Gualda, Paulo Marques, Pedro Inoue, Rodrigo Ferrarini, Rosana Stavis e Marco França (Ator/músico, Instrumentista convidado)
Onde: Teatro Ipanema - Rua Prudente de Morais 824 - Ipanema - Rio de Janeiro
Informações: (21) 2267-3750
Quando: de quinta-feira a segunda-feira às 20h30. Até dia 19 de março
Quanto: R$ 50

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